Psicografia de um aleijado

Dói, meu amigo, dói muito. 

Passei a última vida sentado numa cadeira de rodas, sem mexer nem braços e nem pernas.

Os únicos movimentos que fazia eram do pescoço para cima.

Nasci assim. Os médicos me disseram que durante o parto, minha cervical foi esmagada, me deixando tetraplégico.

Nasci numa família pobre. Uma pequena casa de madeira num bairro sem pavimento, esgoto a céu aberto e muitos vizinhos doentes.

Sentia o odor do esgoto a céu aberto todo dia pela manhã, olhava pela janela do casebre imaginando a sorte que o sol tinha de ser tão perfeito. Olhava ao lado e via meus pais dormindo numa minúscula cama.

Eu dormia numa cama larga de ferro doada pelos vizinhos, que ocupava um espaço precioso no quarto dos meus pais. 

Tive irmãos. Dois morreram, um de câncer e o outro atropelado. Ficou apenas eu e uma prima, que meus pais adotaram, porque sabiam que sua mãe era usuária de crack.

Eu costumava dormir escutando o choro abafado do pai e da mãe, porque não tinham dinheiro para os meus analgésicos e por ganharem pouco.

Minha mãe vendia balas no semáforo e meu pai era auxiliar de obras.

Meu coração, vendo tudo isso, sofria de angústia. Eu queria muito ajudar, mas não conseguia me mexer. 

Alguns visitantes vinham até nossa casa, nos davam alimentos, e falavam de Deus. Era um momento interessante, que só fazia refletir ainda mais a nossa miséria.

Com 14 anos a tetraplegia começou a inflamar as articulações, causando-me dores insuportáveis.
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Eu fazia de tudo para calar a boca, mas os gritos saiam mesmo que eu fizesse um esforço brutal para impedi-los.

Um dia meu pai me abraçou e disse: 

- Filho, Deus é justo e bom, tenho certeza que toda essa dor, que todo esse sofrimento tem uma explicação, tem que ter filho, tem que ter.

Mas não foi o que ele falou que me chocou, mas "como" ele falou.

As suas palavras foram mais fortes do que qualquer morfina, sua voz me tranquilizou, aliviou as minhas dores e eu dormi a tarde inteira.

A partir daquele dia esperei cada minuto pela minha "explicação".

Acontece que eu sei o quanto ele sofria. A privada sempre entupida, o choro sempre contido, a paciência sem igual.

E eu ali, torto, incapaz. Digo hoje, com toda a certeza, que foi unicamente o amor dos meus pais que me manteve vivo.

Aos 47 anos, as despesas com fraudas, esgotado pelo tédio da exata rotina, do mundo que a tempos já havia desmoronado, meu pai tombou na cozinha suja, caiu dormindo no chão, para nunca mais acordar.

Escutei o barulho, já pressentia, gritei o mais forte que pude. Minha mãe chorou ao vê-lo deitado no chão.

Eu só lembro de escutar ela chorando e perguntando:

- Por que meu Deus?? Porque a gente?

O infarto fulminante tirou meu pai de mim. Arrancou da minha vida uma das poucas fontes de alívio. Papai descansou aos 69 anos.

Minha mãe continuou a cuidar de mim, minha prima adotada como irmã desapareceu para nunca mais voltar.

Quando concluí 50 anos, morando no mesmo casebre de madeira úmida e apodrecida, me senti muito febril e tossindo sangue. Uma pneumonia me visitava, arrebatadora, violenta... 50 anos depois de ter nascido, finalmente morreria.

Então, naquela tarde fria de outono, minha mãe ao lado da minha cama, um cobertor barato de napa enrolava meu corpo já completamente atrofiado.

Por alguns minutos bateu uma sonolência, começando pelas minhas extremidades, meu corpo adormeceu resfriando-se todo.

Fechei os olhos e adormeci. Imediatamente comecei a sonhar. Sonhei que estava no mesmo lugar, naquela cama e minha mãe chorando ao lado. No sonho me senti leve e não conseguia ver o meu corpo.

Parecia que só a minha visão funcionada. Vaguei sem conseguir ver meu corpo. A dor parou. Fui na cozinha, na sala e na calçada da frente, sem fazer nenhum esforço, apenas com a minha visão.

Lentamente me dei conta de que não consegui mais voltar ao corpo, que eu estava consciente e que não estava sonhando. E então fiquei observando. Nada mudou. 

Eu estava livre da minha prisão. Fiquei feliz. E junto com a euforia vieram as memórias. Veio a tão esperada explicação. 

De relance eu vi meu pai encostado na porta, me esperando; ele apenas me olhou, sem dizer nada.

E eu disse:

- Pai! Agora eu sei! Eu sei o porque de ter passado uma vida inteira aleijado.

Meu pai também estava feliz, e decidimos nunca mais causar dano a ninguém, nunca mais.

Finalmente nos perdoamos, o amor do meu pai apagou todo o ódio daquele tiro pelas costas, e eu aprendi, aprendi a nunca mais deflorar a mulher dos outros, principalmente destruindo uma família feliz.

Não seja o outro. Não seja a outra. Não cobice a esposa do próximo. Não seja amante do marido de uma esposa feliz. Vai por mim, não vale a pena.

A dor passou, dívida paga, bola pra frente, Graças a Deus.

Matheus Calighari de Gusmão, Espírito de um ex-tetraplégico. 


    

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